Para falar sobre o urbanismo, gostaria de retomar um pouco as idéias da Escola de Chicago, especialmente o texto de Louis Wirth ‘Urbanism as Way of Life’ publicado originalmente em 1938. As reflexões da Escola de Chicago têm uma importância fundamental para o urbanismo. Como participantes de um contexto de crescimento explosivo e descontrolado das cidades industriais americanas no início do século XX, sociólogos iniciam uma reflexão do que veio a ser chamado ‘sociologia urbana’. A escola de Chicago foi pioneira nas reflexões que tratam das relações sociais na cidade industrial – o urbanismo.
“O mundo contemporâneo já não mais apresenta o quadro de pequenos grupos humanos isolados, espalhados através de um vasto território, como Sumner descreveu a sociedade primitiva. A característica marcante do modo de vida do homem na idade moderna é a sua concentração em agregados gigantescos em torno dos quais está aglomerado um número menor de centros e de onde irradiam as idéias e as práticas que chamamos civilização. (...) As influencias que as cidades exercem sobre a vida social do homem são maiores do que poderia indicar a proporção da população urbana, pois a cidade não somente é, em graus sempre crescentes, a moradia e o local de trabalho do homem moderno.” (WIRTH, 1973:90)
“Já que a cidade é o produto do crescimento e não da criação instantânea, deve-se esperar que as influências que ela exerce sobre os modos de vida não sejam capazes de eliminar completamente os modos de associação humana que predominavam anteriormente.” (WIRTH, 1973:91) Aqui Wirth enfatiza que apesar da urbanização o homem trás para a cidade hábitos e costumes de sua vida ‘rural’.
Definindo um pouco mais o que seria a cidade, Wirth coloca: “A predominância da cidade, especialmente da grande cidade, poderá ser encarada como uma conseqüência da concentração, em cidades, de instalações e atividades industriais e comerciais, financeiras e administrativas, linhas de transporte e comunicação e de equipamento cultural e recreativo como imprensa, estações de rádio, teatros, bibliotecas, museus, salas de concerto, óperas, hospitais, instituições educacionais superiores, centros de pesquisa e publicação, organizações profissionais e instituições religiosas e beneficentes.” (WIRTH, 1975:93) A cidade é um ponto de aglomeração das relações que impulsionam as relações sociais. Logo este ponto de ligação comum entre as diversas atividades produzidas num espaço (urbano) se estende além dos limites do que podemos definir como cidade.
“Além do mais, podemos inferir que a vida rural levará a marca do urbanismo, à medida que sofre a influência das cidades através de contato e comunicação. Poderá servir de contribuição para o esclarecimento das declarações que se seguem, repetirmos que, embora o local do urbanismo como um modo de vida deva, evidentemente, ser achado caracteristicamente em localidades que preenchem os requisitos que estabeleceremos para a definição de cidade, o urbanismo não está confinado a tais localidades, mas manifesta-se em graus variáveis onde quer que cheguem as influências das cidades.” (WIRTH, 1975:95) (grifo nosso) Wirth chama atenção para sermos cautelosos na definição de cidade que é caracterizada por questões culturais locais e condicionantes históricos enquanto que o urbanismo é uma relação que se dá num espaço que vai além dos limites do lugar citadino.
“É de capital importância chamar-se a atenção para o perigo de se confundir urbanismo com industrialismo e capitalismo moderno. (...) Todavia por diferentes que possam ter sido as cidades de épocas anteriores pré-industrial e pré-capitalista, não deixavam de ser cidades. Para fins sociológicos, uma cidade pode ser definida como um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos.” (WIRTH, 1973:96)
“Os vínculos de parentesco, de urbanidade e os sentimentos característicos da vida em conjunto durante gerações sob uma tradição ‘folk’ comum tenderão a desaparecer e, no melhor dos casos, tenderão a ser fracos num agregado cujos membros apresentam origens e formação tão diversas.” (WIRTH, 1973:99) (...) “Numa comunidade composta de grande número de indivíduos que não se conhecem intimamente e cujo número é excessivo para se reunirem num só lugar, torna-se necessário efetuar a comunicação por meios indiretos e articular interesses individuais por um processo de delegação. Especificamente na cidade, os interesses são efetivados através de representação.” (WIRTH, 1973:102) (grifo nosso) Logo as relações que se dão num aglomerado urbano criam linguagens por um processo de representação que permitem uma inter-relação entre indivíduos que não se conhecem e não tem sem nenhuma relação de parentesco. Aqui então temos uma diferença fundamental entre o modo de vida ‘rural’ e o modo de vida ‘urbano’ – a família, as relações de parentesco tendem a perder importância. As relações se dão no campo das representações, aqui Wirth sugere um embrião do que Debord veio mais tarde a teorizar como ‘Sociedade do Espetáculo’.
Para Wirth o urbanismo é uma forma de organização social, daí ‘modo de vida’. “Os traços característicos do ‘modo de vida’ urbano têm sido descritos sociologicamente como consistindo na substituição de contatos primários por secundários, no enfraquecimento dos laços de parentesco e no declínio do significado social da família, no desaparecimento da vizinhança e na corrosão da base tradicional da solidariedade social.” (WIRTH, 1973:109) (...) “Como um todo, a cidade desencoraja uma vida econômica na qual o indivíduo, numa época de crise, tenha uma base de subsistência à qual recorrer, e desencoraja o emprego autônomo. Se bem que as rendas dos habitantes das cidades sejam maiores, em média, do que as do interior, parece que o custo de vida é maior nas cidades maiores.” (WIRTH, 1973:110) A vida econômica autônoma ou de subsistência, característica de uma sociedade ‘rural’ é alternada por uma vida econômica interdependente. A partir desta observação, sociólogos da Escola de Chicago desenvolvem suas teorias de ‘ecologia urbana’ ou ‘ecologia humana’
“Reduzido a um estágio de virtual impotência como indivíduo, o habitante urbano esforça-se para fazer parte de grupos organizados de interesses semelhantes para obter seus fins. Isso resulta numa enorme multiplicação de organizações voluntárias com um número de objetivos tão variados quanto às necessidades e interesses humanos. Embora de um lado os laços de associação humana estejam enfraquecidos, a existência urbana envolve um grau de interdependência maior entre os homens e uma forma mais complicada, frágil e volátil de inter-relações mútuas sobre muitas fases das quais o indivíduo como tal não consegue exercer quase nenhum controle. Frequentemente há apenas uma relação muito tênue entre a posição econômica ou outros fatores básicos que determinam a existência do indivíduo no mundo urbano e os grupos voluntários aos quais ele se acha filiado.” (WIRTH, 1973:110)
“Apesar do predomínio do urbanismo no mundo moderno, ainda sentimos falta de uma definição sociológica do que seja cidade, a qual levaria em conta, adequadamente, o fato de que, enquanto a cidade é o local característico do urbanismo, o modo de vida urbano não se confina às cidades. Para finalidades sociológicas, uma cidade é uma ficção relativamente grande, densa e permanente de indivíduos heterogêneos. Os grandes números são responsáveis pela variabilidade individual, pela relativa ausência de conhecimento pessoal íntimo, pela segmentação das relações humanas as quais são em grande parte anônimas, superficiais e transitórias e por características correlatas. A densidade envolve diversificação e especialização, a coincidência de contato físico estreito e relações sociais distantes, contrastes berrante, um padrão complexo de segregação, a predominância do controle social formal, e atrito acentuado, entre outros fenômenos. A heterogeneidade tende a quebrar estruturas sociais rígidas e a produzir maior mobilidade, instabilidade e insegurança, e a filiação de indivíduos e a uma variedade de grupos sociais opostos e tangenciais com um alto grau de renovação dos seu componentes. (...) O indivíduo, portanto, somente se torna eficaz através de grupos organizados.” (WIRTH, 1973:112-113)
o modo de vida
Completando um pouco mais as colocações de Wirth, o texto ‘A Metróple e a Vida Mental’ de Georg Simmel trás uma outra abordagem para a compreensão das relações entre indivíduos no meio urbano. Simmel diz que “a mente moderna se tornou mais e mais calculista. A exatidão calculista da vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da ciência natural: transformar o mundo num problema aritimético, dispor todas as partes do mundo por meio de fórmulas matemáticas.” (SIMMEL, 1973:14) “O desenvolvimento da cultura moderna é caracterizado pela prepoderância do que poderia chamar de o ‘espírito objetivo’ sobre o ‘espírito subjetivo’. (SIMMEL, 1973:23) (grifo nosso) Logo qualquer valor cultural ‘subjetivo’ que não se encaixasse nos fins universais do projeto moderno eram menosprezados. A conseqüência desta postura foi o “retrocesso na cultura do indivíduo com relação a espiritualidade, delicadeza e idealismo. Essa discrepância resulta essencialmente da crescente divisão de trabalho. Pois a divisão de trabalho reclama do indivíduo um aperfeiçoamento cada vez mais unilateral. E um avanço grande no sentido de uma busca unilateral com muita freqüência significa a morte para a personalidade do indivíduo. Em qualquer caso, ele cada vez menos pode equiparar-se ao supercrescimento da cultura objetiva.” (SIMMEL, 1973:23) (grifo nosso)
“O indivíduo tornou-se um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva.” (SIMMEL, 1973:23)
Segundo Simmel a vida torna-se fácil para a personalidade da pessoa que os estímulos, interesses, uso do tempo livre, consciência são dados pelo ‘espírito objetivo’. Assim a pessoa é conduzida numa corrente contínua onde a busca pela autenticidade é uma ‘opção’ desnecessária. Mas isto não impede que haja ‘correntes alternativas’ e “isso resulta em que o indivíduo apele para o extremo no que se refere à exclusividade e particularização, para preservar sua essência mais pessoal. Ele tem de exagerar esse elemento pessoal para permanecer perceptível até para si próprio. A atrofia da cultura individual através da hipertrofia da cultura objetiva é uma razão para o ódio amargo que os pregadores do mais extremado individualismo, Nietzsche acima de todos, votam à metrópole.” (SIMMEL, 1973:24) A questão do gosto individual passou a ser relevante no início do século XX, principalmente com os ‘economistas neoclássicos’ que procuravam – sob argumentos questionáveis – a satisfação de gostos individuais e não mais a imposição de um gosto coletivo. A particularidade passa a ser explorada pela economia, a pesquisa de público alvo, consumo dirigido, etc.
O ‘espírito objetivo’ pode ser entendido como uma abordagem da ‘alienação’ de Marx sob o ponto de vista do comportamento e da personalidade do indivíduo urbano. Mais tarde Debord retoma os conceitos ‘alienação’ e ‘separação’ sob outro ponto de vista (o que já discutimos). Não mais visto sob a divisão do trabalho no processo produtivo industrial e nem somente sob o modo de vida urbano, mas do ponto de vista da inter-relação entre indivíduos dada pela representação – a sociedade do espetáculo – algo que Wirth já prenunciava no seu texto de 1938.
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quarta-feira, 18 de março de 2009
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